Desejo é uma palavra antiga
por Luciano Mattuella
Desejo é uma palavra antiga.
Sua raiz epistemológica é latina: desiderio.
Siderio, claro, chega até nós também em sideral, como em espaço sideral, mas também em siderar, como na ação ou ato de ficar siderado, envolvido, fascinado por algo.
Os planetas orbitam suas estrelas porque estão siderados por elas.
Há algo de envolvente e sedutor nas imensidões dos universo. Mas há também muito de fascinante nas nossas pequenas orbitas cotidianas.
Acordar, escovar os dentes, tomar café da manhã, sair de casa para trabalhar, almoçar ao meio dia, trabalhar de novo, voltar para casa, jantar assistindo a um episódio de alguma série do momento, deitar, talvez ler e dormir. Enxágüe e repita.
No dia seguinte, tudo igual.
A sideração é uma forma de relação com a vida, mas não a única. Nós podemos ficar completamente alienados em nossas pequenos universos, alienígenas habitando um mundo que não nos é autêntico, mas que parece ser o correto, adequado às extra-terrenas exigências dos famosos e das celebridades.
Mas olhar demais para as estrelas da vez pode cegar, pode nos impedir de ver que logo mais elas entrarão em supernova e, pouco tempo depois, não falaremos mais delas.
É aí que entra a partícula de do vocábulo de-siderio. No latim, o de significa, em geral, um “não”, é uma partícula de negação. De-siderar-se, então, como postura ética: questionar os movimentos, não se deixar siderar pela luz opaca das estrelas artificiais e das órbitas que parecem compulsórias.
Mas não são.
Ainda que nasçamos dentro de um universo com suas regras e leis, ainda que muito de nosso destino já esteja antecipado pelas constelações que nos precedem (a história de nossa família, os ideais sociais, os determinismos biológicos), ainda assim nós carregamos dentro de nós a gravidade de dizer “não”, de matizarmos e questionarmos o que nos sidera.
Proponho como postura ética o anti-mapa-astral, uma cartografia íntima que des-denha e des-monta as determinações, que não se contenta com o destino, que toma para si a autoria de sua própria tragédia.
Talvez tenha sido isso que Lacan tenha nos ensinado quando afirmou que não devemos ceder de nosso desejo: que é importante estarmos atento à etimologia das palavras, uma vez que nós, além de pó de estrelas, também somos feitos dos restos de palavras ancestrais.
De quem é o corpo pendurado na janela?
por Thaiane Paschoal
Trabalho a maior parte do tempo no meu escritório em casa. Tenho o privilégio de usufruir de uma janela que dá para os fundos do nosso prédio e para os fundos do prédio vizinho. Não são raros os momentos em que eu me flagro distraída olhando para a torre do condomínio ao lado, meus vizinhos de luxo.
Observo esse edifício residencial como quem quer ver por entre as frestas do concreto. Cada uma dessas vidas, dentro de apartamentos empilhados, tem seu traço distintivo. Cada uma delas é única e indivisível. No exercício de espiar as singularidades alheias, quem sabe eu encontre a minha própria indivisibilidade.
Por exemplo: no terceiro andar, todos os dias, um casal passa horas sentados próximos à janela. Eu os vejo conversando entre si, tomando café, fazendo ligações telefônicas. Eles ficam muito tempo no mesmo lugar. O que será que eles tanto fazem ali?
Mais acima, o apartamento do décimo ou décimo primeiro, tem uma peculiaridade. Eles penduram roupas na janela com frequência. Não que eu considere isso um problema, mas não foram poucas as vezes que me assustei flagrando uma silhueta flutuando. Só consigo relaxar quando me dou conta de que se trata apenas de um casaco pegando sol.
Vez por outra, assisto uma artista trabalhando em suas telas na sacada perfeitamente decorada do apartamento do andar mais baixo.
Na repetição entediante da vida, encontramos tesouros justamente por entre as gretas do cotidiano. Acontece que essas janelas precisam ser limpas, mas quem faz isso não são as mesmas pessoas que falam ao telefone ou pintam telas. Alguém tem que fazer o trabalho limpo e nesse caso, são as trabalhadoras domésticas.
Diversas vezes presenciei mulheres penduradas do lado de fora do edifício lustrando a parte externa do vidro. Sem nenhuma segurança, vale dizer.
Na hora de pegar no pesado, é aquela mulher sozinha, o equilíbrio dos pés e o pano na mão. A vida que se arrisca nunca é aristocrática, nem herdeira. Raramente, é uma vida masculina que limpa os vidros dos edifícios de luxo. Existe uma tradição imbecil em colocar a vida de uma pessoa em risco para manter uma boa aparência. Entretanto, quem está em risco é sempre o corpo de uma mulher de classe social mais baixa. Nesse sistema, elas valem menos que uma mancha na janela.
Em tempos de denúncias das práticas de escravidão moderna, já passa da hora de nos questionarmos sobre o que estamos fazendo que, de alguma forma, contribua para a perpetuação desse contexto.
São essas vidas ocultadas pelo concreto que precisam ser vistas pelas frestas.
Para refletir sobre o custo de uma janela bem polida, seguem duas dicas:
Já que ouvimos tanto sobre quem é capaz de escravizar, precisamos ouvir as versões das pessoas que são vítimas dessa prática nefasta.
O sucesso das narrativas de true crime sempre me deixam intrigada com o absoluto interesse que sentimos na perversão do outro, a maldade nos prende mais a atenção do que a subjetividade daquele que sofre a violência.
"Solitária" de Eliana Alves Cruz retrata uma grande parcela da classe média e da elite brasileira, conhecemos pessoas parecidas com essas personagens, nos identificamos com os cenários tão bem detalhados: o quartinho da empregada, os aposentos do porteiro. O livro narrado por Mabel e d. Eunice apresenta ao leitor a complexa relação de trabalho que tanto invisibiliza esses inúmeros trabalhadores.
Série - Histórias Impossíveis - Episódio: Mancha
Essa é uma nova série antológica disponível da Globoplay.
A série Histórias Impossíveis é composta de episódios independentes que trazem a tona questões de raça e gênero. O primeiro episódio da série tem como temática principal, a relação de uma mulher branca de classe média e sua empregada doméstica.
Links Interessantes:
O perfil da escritora Julia Dantas para o Jornal do Comércio está imperdível: https://www.jornaldocomercio.com/especiais/reportagem-cultural/2023/03/1097330-julia-dantas-entre-andancas-e-escritas-consolida-seu-nome-na-literatura.html
Neste artigo, Carlos Javier González Serrano nos alerta para os risco da psicologização e psiquiatrização do discurso corrente: https://ethic.es/2023/03/malestar-el-peligro-de-la-cultura-psi/
Última coluna do Luciano publicada na Sler em 21/03/2023 “Pornografia e a pílula azul”: https://sler.com.br/pornografia-e-a-pilula-azul/
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