Nota de Rodapé #03
sobre a arte de escavar, as bordas da liberdade de expressão e links interessantes
Arqueologia
por Luciano Mattuella
Fazer uma análise talvez seja como apresentar a nossa cidade a um amigo.
No final de semana passado recebemos em Porto Alegre um querido amigo que mora em São Paulo. Dias antes, eu e a Thai já planejávamos onde gostaríamos de levá-lo, qual cidade queríamos que ele conhecesse.
O trajeto acabou sendo uma mistura do clássico - o Farol Santander, o Gasômetro, o parque da Redenção - com algumas novas atrações como o Cais Embarcadeiro e o os bares da Cabral.
Fato é que, à medida em que íamos apresentando a cidade, fui me dando conta do quanto a Porto Alegre em que eu cresci foi se tornando outra - ou fui eu que mudei?
Em uma das noites, fomos ao Cabaret, um lugar em que eu costumava sair na época da faculdade, então dá pra colocar uns 20 anos aí . Naquele tempo, a casa noturna (se chama assim ainda?) era na Avenida Independência, e não lá perto da Casa de Cultura, como é agora. O público é parecido, mas um tantinho menos indie. Até porque ser indie hoje em dia é démodé.
Talvez até seja cringe.
Cringe mesmo, na real, é sediar um evento com nome em inglês no Brasil. Ou no Brazil, como a crew de entrepreneurs do South Summit chamou o nosso country. Haja itálico pra tanta colonização, sabe?
Mas enfim, apresentar uma cidade é também explorar a nossa própria história neste lugar.
Gosto que Freud equipara o trabalho do psicanalista ao do arqueólogo: deitados no divã, vamos tirando camadas e camadas de histórias acumuladas e assim, aos poucos, nos aproximamos de alguns lugares que talvez nos causem vergonha, medo, angústia… ou alegria, paz, conforto.
É como se fôssemos conduzindo o nosso psicanalista pela mão e dizendo: “Olha, aqui é minha casa de infância”. “E aqui foi onde dei o meu primeiro beijo”. “Mas aqui foi onde a mesma menina me deu um fora”.
O mais lindo disso é que é preciso que haja um outro nessa aventura, que estejamos caminhando com alguém que não conhece onde moramos. Apresentamos o nosso bairro para um outro, mas é como se nós também pegássemos emprestada deste parceiro de viagem um tanto de sua curiosidade.
O terreno arenoso de Porto Alegre - afinal, estamos na beira de um rio (ou lago, para os puritanos da hidrologia) - é bastante permeável às escavações.
Talvez por isso sejamos em tantos psicanalistas por aqui.
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por Thaiane Paschoal
Esses dias tive a infelicidade de ler uma coluna, escrita por um homem branco (lógico), com pontuações e digressões misóginas, discurso de ódio e exposição de uma opinião pessoal que fere diretamente outras pessoas, sob a égide do "falo mesmo" e "lá vem textão". Ele se refere a uma suposta "geração mimimi" que não é capaz de suportar o mundo, disse ainda, que se ele "sobreviveu" aos "cuecões" e "bolinhas de papel babadas", era infantilidade um adulto que não suportar certas ofensas. E ele fez tudo isso, vestindo-se de uma roupagem progressista, o que eu considero um agravante.
Estamos há anos criticando as táticas de violência perpetuadas nas redes sociais, para agora, nos apropriarmos delas para lacrar no Instagram? Para ganhar mais cliques usando títulos que provocam reações rápidas nos leitores?
Para além dessas perguntas, quando vejo um homem branco privilegiado, com espaço semanal para escrever em um veículo, dizendo-se defensor de causas progressistas e usando sua exposição para atacar e despejar ódio, ridicularizando uma mulher, me pergunto no que ele se difere dos red pills ou do infame Monark?
Quando finalizei a leitura do texto, desejei que esse cara fosse demitido. Quem escreve com ódio, está sujeito a despertar ódio no outro. Respirei, pensei, e ainda assim mantenho a posição de que ele deveria ser responsabilizado.
A liberdade de expressão é um dos grandes temas dos nossos tempos, é uma discussão que precisa ser realizada amplamente. De toda forma, já sabemos que a liberdade de expressão também tem suas bordas e seus limites. Por enquanto, acho que caminhamos na corda-bamba ao tratar sobre o assunto, não queremos ultrapassar a fina linha, que quando cruzada, se trata de censura.
Lendo o texto escrito pela Chimamanda Ngozi Adichie para a Revista Quatro Cinco Um na edição de março*, encontrei uma visão muito bem fundamentada que me apresentou um ponto de vista diferente da opinião que havia formado previamente.
A escritora faz uma defesa radical contra a censura. Para Chimamanda, o colunista mencionado no início do texto não deveria ser demitido ou apagado. Ele deveria ser respondido. Em suas palavras "não vamos banir, vamos responder. Nesta era de desinformação crescente no mundo todo, na qual é fácil enfeitar tão bem uma mentira que ela adquire o brilho da verdade, a solução não é esconder a mentira, mas expô-la e tirar dela esse brilho falso".
Concordo com o argumento e adoraria sonhar com essa utopia, mas sabemos o quanto um discurso de ódio pode ser destrutivo, o que torna a discussão muito mais complexa.
É preciso destacar a censura praticada arbitrariamente pelas redes sociais. Em grandes plataformas, especialmente o Instagram, não se pode falar ou escrever determinadas palavras. Se você insistir, será automaticamente levada a um shadowban**. Palavras como violência, sexo, terrorismo, feminismo entre muitas outras, precisam ser escritas de forma cifrada: viol*nc!a, s3xo, t3rro1sm0, fem!n1smo.
Chega a ser ridículo quando grandes veículos de comunicação escrevem a legenda de seus posts dessa forma: "comerciante é a22ass!n4d0 na região metropolitana de São Paulo".
Já me peguei fazendo isso, mas decidi ignorar e sigo com as postagens sendo jogadas nas sombras do Instagram. Perco likes mas mantenho a integridade.
Quando o assunto é mamilo feminino, então, o Instagram só falta sofrer uma combustão espontânea. Meu deus, o bico de um peito, socorro!!!
Esse tipo de política contribui para a perpetuação de certos comportamentos dos usuários dessas redes. Não à toa assistimos à ascensão dos red pills e outras seitas que cultuam o ódio às mulheres. Sobre essa prática, Chimamanda ressalta que "as empresas donas de mídias sociais, com seus algoritmos místicos e sua falta de transparência, exercem enorme controle sobre quem pode falar e quem não pode".
Na nossa era, essas ideias precisam ser aprofundadas, debatidas, conversadas, escritas, lidas e pensadas. Afinal, onde estão essas bordas da liberdade de expressão?
Enquanto não encontramos respostas, os odiosos difundem suas ideias com o apoio dos algoritmos, enquanto essa regra é feita pelos bilionários que comandam as redes sociais, as duas coisas mais perigosas do mundo são enviadas para a escuridão: peitos e palavras.
* https://www.quatrocincoum.com.br/br/artigos/politica/sobre-liberdade-de-expressao
** Shadowban é uma punição que dificulta a visualização de posts que violam as regras de uso da plataforma, ocultando as publicações e deixando-as na sombra. Não é difícil encontrar perfis dedicados a conteúdos explícitos de violência, golpes financeiros, cultura armamentista e etc. Mas experimenta postar uma mulher de peito de fora para ver o que acontece.
Links Interessantes:
Após as denúncias de assédio sexual e moral feitas por Dani Calabresa sobre seu ex-chefe Marcius Melhem, a vítima sofreu retaliações de seu agressor. Para credibilizar as alegações da Dani, outras dez vítimas e testemunhas se juntaram para relatar os abusos. Foi preciso mais de dez pessoas para que a vítima pudesse ter a chance de ser ouvida com a mesma credibilidade que desprender ao seu abusador. A matéria completa está aqui: https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/caso-marcius-melhem-mulheres-que-acusam-humorista-de-assedio-quebram-o-silencio
Reportagem trazendo uma visão aprofundada sobre as demissões em massa promovidas pelas big techs: https://www.intercept.com.br/2023/03/20/demissoes-na-meta-twitter-google-xp-e-empresas-de-tecnologia-tem-leve-ameaca-cortes-durante-licenca-e-rescisao-menor-para-brasileiros/
Texto que levanta uma importante discussão sobre o quanto devemos ou não editar as obras com teor segregatório. E as consequências de fazer isso: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2021/01/29/devemos-editar-os-termos-racistas-nas-obras-de-monteiro-lobato.htm
Última coluna do Luciano publicada na Sler em 04/04/2023 “A vida low carb“: https://sler.com.br/a-vida-low-carb/
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