Nota de Rodapé #06
sobre masculinidade nos grupinhos de whatsapp, memórias afetivas com séries e outras coisas...
Já ouviu falar nos termos ghosting, orbiting, curving? Sabe diferenciar um ficante premium de um conversante? No novo episódio do Na Sala de Espera, conversamos sobre os novos termos criados para comportamentos nas relações amorosas. Se ainda não ouviu, basta clicar nesse link aqui embaixo e seguir o podcast na sua plataforma digital para não perder o lançamento dos próximos episódios:
Os grupos de homens do WhatsApp
por Luciano Mattuella
Em certa altura de 2018 fui adicionado ao grupo dos colegas - homens - do tempos do colégio. Eram pessoas que eu nunca mais tinha visto, um tanto porque eu não tinha lá tanta afinidade com eles, outro tanto porque, por eu ter estudado em uma escola tradicional, eu já supunha os caminhos ideológicos que tinham seguido. Repare o leitor que estou falando de 2018, alguns meses antes da pornográfica eleição de Jair Bolsonaro.
Era a primeira vez que eu tinha entrado num desses chamados “grupos de homens” do WhatsApp.
Não consegui suportar ficar nem um mês ali.
E pior que não foram as questões políticas - eu estava certo com relação ao rumos de pensamento deles, aliás - que me afastaram daquele coletivo meio tribo, meio manada. O que realmente fez com que eu saísse do grupo foi a quantidade de fotos e vídeos de pornografia que circulavam naquele ambiente que, fosse um espaço físico no mundo, estaria impregnado de um cheiro forte de testosterona, ressentimento e misoginia.
Não me considero alguém lá muito puritano. Não acredito que a pornografia seja a causa dos problemas de gênero ou sexuais dos tempos atuais: pelo contrário, ela é um sintoma. Podemos aprender muito sobre o que passa pela fantasia de alguém a partir do que ela assiste para se excitar. E, muitas das vezes, isso também fala bastante sobre o laço social que nos organiza.
O que me fez questão ali foi que aos poucos as conversas sobre o colégio foram rareando e aquele grupo se tornou somente um espaço para troca de vídeos e fotos de mulheres nas mais variadas posições, sendo submetidas às mais indignas situações. Em suma: achei incômodo estar em um grupo em que homens enviavam fotos de mulheres para excitar outros homens.
O irônico da coisa é que eram justamente estes os colegas que, desde aquela época do colégio, se colocavam no lugar dos “machos-alfa”. Boa parte deles eram os filhos ou sobrinhos de pessoas importantes - políticos, empresários… - que sempre tiveram alguém lhes dizendo que o mundo lhes pertencia. O que incluía as mulheres, claro.
O psicanalista aqui não pode deixar de pensar em um paralelo destes grupos de homens no WhatsApp com uma prática não muito rara na construção da masculinidade, aquilo que os americanos chamam de circle jerk. Em português bem ao estilo de Nelson Rodrigues, a tradução seria algo como “roda de punheta”, os não tão comentados encontros em que púberes e adolescentes se juntam para se masturbar e ver os outros se masturbando.
Como o velho Freud já há mais de cem anos nos ensinou, há muito da subjetivação masculina que passa pela via da homossexualidade, não só no que se refere ao amor ao pai, mas também por esta paixão curiosa pela masculinidade do outro, até mesmo pela virilidade do outro.
Se Freud nos dizia que a pergunta organizadora da feminilidade é “O que é uma mulher?”, é com Jacques Lacan que aprendemos que os homens (os cis-hétero, pelo menos) vivem às voltas com a pergunta: “O que quer uma mulher?”. E isso só pode ser perguntando (não concretamente, claro) a uma mulher desejante, não a um objeto emudecido.
Talvez os meus colegas de colégio nunca deitem num divã para se ocupar com a homossexualidade que lhes é constitutiva. Talvez sigam pelo resto da vida tentando entender a sua própria virilidade na medição com a dos outros homens.
Ainda que seja impossível nos livrarmos completamente deste ciclo de comparação, com uma boa análise talvez nós homens cis-héteros possamos endereçar as perguntas sobre a nossa masculinidade para quem tem realmente algo a responder sobre isso. E, com sorte, paremos de nos organizar em pequenos bandos de glorificação da ereção alheia.
Memórias afetivas com séries
por Thaiane Paschoal
Eu assisti Gilmore Girls em uma época terrível da minha vida. Estava passando por um tratamento médico hard core e passava as tardes no meu quarto com o computador no colo maratonando séries em uma época anterior à existência dos streamings.
O fato é que eu me lembro pouco do meu tratamento, mas sobre a série, tenho quase tudo decorado. Eu me recordo dos episódios mais memoráveis, de diálogos específicos, dos figurinos, do sentimento de tranquilidade que me dava quando eu podia ficar com a cabeça somente focada naquelas personagens.
Essa se tornou uma das minhas séries mais afetivas. Eventualmente, quando quero deixar algo passando na TV, escolho Gilmore.
No mês passado, nós esvaziamos meu antigo apartamento em Curitiba. Foi uma tarefa árdua. Eu tive que me deparar com espaços atrolhados de coisas. Desde cartinhas das amigas da adolescência até pesadas pilhas de pratos jamais utilizados. Pratos belíssimos, diga-se de passagem, mas em quantidade exagerada.
Enquanto eu encarava com as coisas que acumulei com o passar dos anos, eu também revisitava a minha versão do passado. Me perguntei muitas vezes “mas por que eu guardei isso?”.
Faltando quatro dias para a chegada do caminhão, eu comecei a me desesperar. Tinha roupa, cobertor, panela de pressão elétrica que não acabava mais. No final da primeira bobina de plástico bolha, eu não tive escolha, precisei deixar Gilmore Girls rolando na TV enquanto embalava xícaras e encaixotava memórias.
Os diálogos acelerados, as relações com suas dinâmicas peculiares me levam para um lugar bom, me confortam. Acho bonita essa relação que criamos com as séries, com essas personagens inventadas e tão realísticas, tão parecidas com as pessoas que nós conhecemos.
Nesse caso, a memória afetiva advinda da arte é um refúgio. E as séries fazem isso muito bem. Nos prendem com amor, pelo afeto, nos pegam pela mão e nos levam por anos ao longo de suas temporadas. E esse envolvimento com a arte é uma coisa linda.
E falando em séries…. se você ficou órfão da família Roy com o fim de Succession, recomendamos o podcast do Michel Arouca e da Carol Moreira comentando detalhadamente todos os episódios da última temporada que acabou na semana passada. Quem sabe ajuda a matar a saudade:
Links interessantes:
Já pensou em marcar hora para transar? Parece que essa é uma nova tendência entre os cansados: https://www.uol.com.br/universa/colunas/ana-canosa/2022/05/14/hora-marcada-pra-transar-sim-por-que-desapegar-do-tal-sexo-espontaneo.htm
A última coluna do Luciano publicada na Sler em 06/06/2023: https://sler.com.br/o-codigo-das-redes-sociais/
Agradecemos a leitura. Se você ainda não se inscreveu, assine para receber a Nota de Rodapé e compartilhe nossa newsletter com seus amigos.
O conteúdo é totalmente gratuito, mas você pode fazer uma contribuição voluntária para o projeto: