Nota de Rodapé #07
sobre aprender a latir, a droga do capitalismo e dicas culturais aleatórias
Alô, Porto Alegre. Em julho começa o curso permanente do Luciano no Espaço Mon Soleil. Derivações Psicanalíticas acontecerá mensalmente e de forma presencial nesse lugar que criamos com tanto carinho e cuidado para recebê-los.
O Espaço fica localizado no bairro Boa Vista na Rua Furriel Luiz Antônio de Vargas, 380 - sala 412. O primeiro módulo começa em julho e nós esperamos vocês.
O valor do curso é R$ 375,00 em até 3x. Se tiver qualquer dúvida ou quiser se inscrever, basta nos chamar através desse link: CURSO DERIVAÇÕES PSICANALÍTICAS.
Sobre aprender a latir
por Luciano Mattuella
Existe uma teoria psicanalítica que diz que a gagueira na infância tem a ver com impulsos agressivos não expressados.
Nunca fui lá muito afeito a essas generalizações, mas posso dizer que, em retrospecto, essa hipótese faz sentido na minha vida. Sim, eu fui uma criança gaga. E sim, eu não falava sobre o que me desagradava. Aquela criança que se jogava no chão pedindo que os pais comprassem um brinquedo? Eu nunca fui essa criança.
Lembro de estar entre os colegas da escolinha e sempre ficar meio à margem, soterrado por aquela verborragia infantil que eu tanto invejava, ao mesmo tempo que odiava. Por que não calavam a boca? Precisavam jogar na cara a minha dificuldade absurda de quebrar o silêncio? A minha quase impossível tarefa de atravessar a tensão superficial que separa a fala da linguagem?
As professoras sempre chamavam a atenção de quem falava demais: “o fulaninho é insuportável, não para de falar um segundo!”. Como eu queria ser este colega inoportuno que atrapalhava a aula de todo mundo - não tanto para fazer o mesmo, mas pra que ficar quieto fosse uma opção, e não uma obediência auto-imposta.
Ou para ganhar a atenção das professoras
Eu imaginava mil formas de desmontar toda a cena da classe com uma piada perspicaz, uma tirada pontual, um belo e ostentoso chiste sobre a nova franja da menina ao lado ou sobre o quão engomadinha estava a camisa do parceiro de classe. Eu pensava tudo isso. E eu não falaria essas coisas se eu conseguisse, porque eu não queria ser inoportuno - nunca quis, aliás, algo de que me arrependo profundamente hoje em dia.
Poucas coisas são mais triste do que uma criança ou um jovem bem comportados.
Porque as frases vinham na minha cabeça. Prontas. Articuladas. Eu sempre fui bom em português, só não conseguia mostrar isso. Quando estava ali na beira de emendar uma oração coordenada em outra, algo não vinha. Eu gaguejava.
Talvez por isso hoje eu escreva? Pra redimir aquele inibido e envergonhado Luciano da infância? Talvez por isso eu deteste quando alguém interrompe quando estou falando, já cansado de eu mesmo ter feito tanto isso comigo mesmo?
Acho que teria feito muito bem para aquele menino que não conseguia expressar sua agressividade (contra o quê? Contra quem?) ter uma cachorra exatamente igual à que temos agora em casa. Uma vira-lata que não poupa latidos, que ao menor sinal de desconforto demonstra sua insatisfação e sai de onde estiver para se jogar nas águas da agressividade.
Eu ficava sempre à beira.
Talvez eu tivesse que ter aprendido a latir.
Bufê de remédio pra dormir
por Thaiane Paschoal
Eu tentei começar esse texto escrevendo sobre outros assuntos. Queria falar sobre automedicação e o perigo de acabar dependente de uma substância para conseguir desempenhar coisas básicas da vida, como dormir. Meu argumento passaria pelo moralismo social elevado que condena o uso de drogas mas incentiva a chapação por cápsulas advindas da indústria farmacêutica.
Fumar um baseado para relaxar e ter uma boa noite de sono, não pode. Bufê de remédio para dormir, pode.
A ideia de falar sobre isso, veio do último episódio do Na Sala de Espera, onde eu confessei ter passado por um período dependendo de Zolpidem para dormir.
Era o mesmo ritual todas as noites. Eu só tomava o remédio quando já estava deitada na cama de pijamas e dentes escovados. Após a ingestão, não pegava mais o celular. Em alguns minutos, o sono batia e eu apagava por mais ou menos seis horas. Um estado de doping que durava da meia noite às seis da manhã.
O motivo de realizar esse ritual cuidadoso era o medo de ter um efeito colateral, já que essa medicação é conhecida por seus perigos. Pela internet afora, são muitos os relatos de pessoas que fizeram loucuras sob efeito dessa droga legalizada e de fácil acesso.
Já, o motivo para eu me arriscar tomando Zolpidem diariamente, mesmo conhecendo todos os riscos, era uma insônia contumaz e prolongada que sofri por muitos anos. O meu problema era considerar que eu não tinha tempo para buscar um tratamento adequado. Em um mundo tão acelerado, onde a gente sequer consegue dormir, tempo sempre é o problema.
Foi um longo caminho para reaprender a dormir sem algo que me conduzisse ao sono. Após, ter realizado um tratamento, que durou bastante tempo, diga-se de passagem, não preciso mais de alopatia para dormir. Tampouco para acordar.
Mesmo, recentemente, com mudança de cidade e abertura de um novo negócio, tudo acontecendo na mais alta intensidade, meu sono não padeceu.
Apesar disso, não deixo de ser uma vítima do capitalismo selvagem. Sempre cansada e questionando se eu não deveria estar fazendo mais. Quando finalizo minhas obrigações do dia, procuro outras coisas para fazer: sempre tem roupa para guardar, mensagens para responder, pendências que só estão esperando a minha culpa capital me impedir de viver um momento de descanso ou ócio.
O problema é que esse sistema faz com que os nossos olhos fiquem iluminados pela luz das telas até quando estão fechados. E assim, não vai ter droga lícita ou ilícita capaz de nos apagar, mesmo que estejamos totalmente dopados.
Sonhos em tempos de Zolpidem foi tema de um episódio muito curioso no podcast da Rádio Escafandro. Vale a pena a escutar:
“O problema são os outros”
O tema dessa série é muito atual: a impossibilidade de diálogo em situações de discordância. Mas também é sobre conflitos íntimos, sociedade brasileira, masculinidades e muitas outras coisas. “Os Outros” é uma série nacional com atuações brilhantes de Adriana Esteves, Drica Moraes, Eduardo Sterblitch e Milhem Cortaz. Os episódios estão disponíveis na Globoplay:
Leia a última coluna do Luciano publicada na Sler em 27/06/2023: https://sler.com.br/a-atencao-monogamica-da-leitura/
Escute o último episódio do Podcast Na Sala de Espera:
Agradecemos a leitura. Se você ainda não se inscreveu, assine para receber a Nota de Rodapé e compartilhe nossa newsletter com seus amigos.
O conteúdo é totalmente gratuito, mas você pode fazer uma contribuição voluntária para o projeto: