Nota de Rodapé #08
sobre representações de gênero em dois textos e dicas culturais aleatórias
Antes de começar, deixamos um convite muito especial.
Sábado, 22/07, à partir das 15h, vamos celebrar a inauguração do Espaço Mon Soleil em Porto Alegre. Venha conhecer o nosso espaço e brindar com a gente:
Saiba mais sobre o Mon Soleil - Cultura e Arte: https://www.instagram.com/monsoleil.art/
Mulher de amigo meu é homem?
por Luciano Mattuella
No último episódio do “Na Sala de Espera”, a Thai falou sobre esta mística entre as mulheres de que “não se deve fazer propaganda do namorado/marido”. A ideia é que o parceiro se torna mais interessante para as amigas quando se fala bem dele, ou seja, que elogiar o parceiro o valoriza aos olhos das outras.
Curioso é que essa é justamente a premissa que sustenta o lugar dos influencers na cultura contemporânea: quando um famoso usa uma roupa de alguma marca ou vai a algum restaurante, imediatamente esta roupa ou este restaurante passam a se tornar objetos de desejo. Ou seja: nós somos influenciados, nós passamos a desejar aquilo que é consumido por um outro que admiramos.
Como já Freud testemunhava, é com as mulheres que aprendemos sobre o desejo. Afinal, essa gramática da influência é a decifração exata da forma como o desejo e a demanda vão se formando na subjetivação de todos nós. Basta olharmos para a relação entre uma criança recém-nascida e sua mãe: quando somos bebês, o mundo é uma grande mistura de estímulos visuais, sonoros, olfativos, táteis… É preciso que alguém recorte essa argila sensitiva primordial e vá apresentando o mundo para nós: “olha ali o au-au!”, ou “que gostoso esse mamá”, e assim vai.
Algo desta relação inicial com o mundo nos acompanha quando adultos. Nós nunca deixamos de ver o mundo pelos olhos dos outros, sempre seremos influenciados por aquilo que desperta desejo em quem está na nossa volta. Boa parte das vezes, nós nos sentimos demandados a gostar de algo justamente porque vemos que este algo é interessante para alguém por quem temos estima.
Mesmo antes da internet e das redes sociais nós já nos interessávamos por aquele restaurante mais movimentado. Um salão vazio, em geral, nos desanima a entrar em algum estabelecimento. A equação é simples: se tem gente querendo comer naquele local, então a comida é boa. O que nem sempre é verdade, diga-se de passagem.
Dito de outra forma: o olhar é sempre carregado de desejo. Nosso olhar é convocado por coisas que nos chamam a atenção, muitas vezes até sem nem percebermos isso. O mundo é sedutor. Tudo o que é olhado ganha relevância, ainda que de forma efêmera. O que significa dizer que esse jogo de olhar e desejo de que falei acima vale também para aqueles subjetivados pela lógica masculina.
Logo depois de terminarmos a gravação do episódio, fiquei tentando lembrar se entre meus amigos nós também falávamos sobre não elogiar namoradas e esposas. Não consegui recordar disso, mas me veio à mente uma frase que escutei muito na minha juventude: “Mulher de amigo meu pra mim é homem”.
Se a lermos atentamente, em momento algum esta frase fala de uma proibição de que o homem que a enuncia deseje outro homem. Aliás, sendo bem fiel ao que é dito, caso a mulher do amigo for interessante, então ela só pode ser desejada como se fosse um homem.
Longe de significar um desinteresse daquele que a enuncia, essa frase aponta justamente para a dimensão homossexual que constitui toda e qualquer masculinidade.
Toda tinta rosa do mundo
por Thaiane Paschoal
Nascida em meados dos anos 80 (do século XX) em um país ocidental e majoritariamente cristão, fui criada em uma sociedade que deixava bastante claro e delimitado os papéis de gênero. Acredito que a maioria dos leitores e leitoras desta newsletter viveram experiências similares, independente das particularidades da educação que cada um recebeu dentro de seu núcleo familiar.
Eu brinquei com bonecas, fui mãe, professora e enfermeira delas. Fiz comida, cortei os cabelos, troquei as roupinhas e coloquei para dormir, somente depois de adulta entendi que todas essas brincadeiras eram um treinamento.
Meninas vestem rosa e exercem cuidados. E não é como se eu não gostasse de brincar assim, tampouco havia algo errado. Eu também brinquei de esconde-esconde, pulei elástico, andei de patins, dancei balé, mas existia um contexto amplo que apontava as direções consideradas adequadas a serem seguidas por uma menina.
Minha família morava em São Paulo e, em meados do mês de dezembro, meu pai me levava à loja da Estrela para escolher uma Barbie de presente de aniversário. Elas sempre estavam vestidas com um deslumbrante vestido rosa e tinham impecáveis cabelos louros escovados, o que me maravilhava e me fazia receber cada uma dessas bonecas como troféus.
Brinquei escondida com minhas bonecas-troféus até os 12 anos de idade, quando fui descoberta por uma amiga mais “descolada” que tirou sarro da minha infantilidade. Já nessa época, eu compreendia que a forma adequada de receber uma crítica, seria acatar com humildade. Depois desse episódio, guardei minhas Barbies dentro do armário e me tornei uma adolescente que já havia parado de brincar.
Eu adoraria ser o tipo de pessoa que não se importa com críticas, mas mesmo carregando bons anos de análise na bagagem, me abalo quando tem um dedo apontado para mim. A diferença é que hoje em dia, tenho um certo estofo para refletir antes de reagir diante delas. Não significa que eu não me pense, repense e reveja minhas opiniões, porém compreendo que a minha constituição depende de um certo entorno do qual também sou parte.
Uma mulher que fala de suas certezas sem titubear, aquela que não diminui o tom diante de uma intimidação, incomoda. Afinal, não é esperado que uma mulher exerça esse papel. Já, quando um homem não se dobra, levanta a cabeça e responde à altura, não causa a mesma comoção, porque isso além de esperado, é socialmente autorizado para os homens.
A estreia do filme “Barbie” da cineasta Greta Gerwig acontecerá na semana que vem e são muitas as especulações sobre os seus bastidores. Qual seria a intenção de Greta trazer à tona esse símbolo de uma feminilidade exigente e cruel à tona, em pleno 2023?
Durante as gravações, a produção do filme causou o esgotamento de toda a tinta rosa do mundo para criar o cenário e a fotografia de forma a representar o universo da boneca.
Veja bem, Greta, uma mulher também nascida nos anos 80, usou toda a cor rosa disponível no mercado mundial para tentar traduzir um espaço que fomos impelidas a imaginar ser o ideal. O lugar de onde vieram nossos troféus.
Acreditar que, porque estamos avançando na discussão de determinadas pautas, a divisão sexual social deixa de existir é bastante ingênuo. No mundo ideal, não há binarismo, não há divisão entre homens, mulheres, pessoas cis, trans, não-binários e todas as outras formas de existência, mas, infelizmente, ainda não existe tinta suficiente para colorir o mundo com as nuances da pintura que desejamos apreciar.
Enquanto isso, trabalhamos para criar novas tintas.
“Isso é muito Black Mirror”
Os clichês não são clichês à toa - e a nova temporada de Black Mirror demonstra bem isso. Já faz algum tempo que temos usado a expressão “Isso é muito Black Mirror” quando alguma coisa da vida parece com um dos episódios da série. Bom, em tempos de fake news, de ChatGPT, de deep fakes, de sequestro da narrativa pela extrema-direita, nós temos todos os motivos para dizer que cada vez mais o nosso dia-a-dia é muito Black Mirror. Ao se distanciar das questões tecnológicas avançadas e dando lugar a narrativas mais contemporâneas, a sexta temporada da série aproxima uma lupa de elementos que já estão em nosso cotidiano, explicitando pelo absurdo os seus efeitos - servindo até mesmo como uma espécie de alerta para a sociedade que estamos construindo.
Os episódios da 6ª Temporada estão disponíveis na Netflix:
Crônicas políticas
Por quem batem as panelas é um compilado das crônicas políticas de Antônio Prata escritas no período de junho de 2023 até dezembro de 2021. É uma experiência interessante ler um relato histórico por meio de vivências cotidianas que testemunham os efeito dos nossos últimos dez anos no Brasil.
Leia a última coluna do Luciano publicada na Sler em 11/07/2023: https://sler.com.br/crise-de-meia-idade/
Escute o último episódio do Podcast Na Sala de Espera:
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