Nota de Rodapé - 1ª edição
sobre notas de rodapé, a travessia de um manguezal e links interessantes
Notas de rodapé
por Luciano Mattuella
A melhor parte das notas de rodapé é o descompromisso.
É possível ler um texto todo sem nos remetermos a elas. As notas de rodapé estão ali como um adendo, um acréscimo não solicitado, um a mais.
Por vezes, elas são burocráticas, servem para explicitar a referência utilizada pelo autor. Estas são as notas de rodapé obedientes, atentas às normas técnicas exigidas pelo decoro acadêmico. Gosto delas, mas sei que estão ali por obrigação, e não por vontade própria.
Uma subcategoria dessas notas são aquelas que falam latim: id, ibidem. Pretensiosas, têm função de aceno escrupuloso para o leitor requintado, como uma senha de um clube secreto de pensadores doutos.
Mas é quando saímos do ambiente acadêmico que a coisa fica realmente interessante.
Penso naquelas notas de rodapé que parece que alguém está falando diretamente com a gente, seus leitores. Não fossem por elas, talvez eu nunca soubesse que o coletivo de borboletas é panapaná. Pa-na-pa-ná. Quase uma onomatopeia, mas não. Assim como as folhas de papel se agrupam em resmas, os camelos em cáfilas e os lobos em alcateias, as borboletas, quando em raro ajuntamento, formam um panapaná.
Aprendi essa com o editor do Gabriel Garcia Marquez, pelo que lembro. O editor, essa figura que anda sempre ao lado do leitor, que o ajuda a se aproximar da sabedoria do escritor. As notas de rodapé de Cem anos de solidão me deixaram mais perto do Gabo, que sempre admirei.
Uma nota de rodapé que é um aperto de mão.
Mas há também aquelas notas de rodapé completamente desnecessárias. Algumas dessas têm pouca relevância para o entendimento do texto, mas mesmo assim o autor fez questão de que estivessem ali. São um excesso? Talvez. Supérfluas? Sim, talvez também.
Mas são essas as notas de que mais gosto.
Assim como quando contamos um sonho em uma sessão de análise, muitas vezes o mais interessante é justamente o que fica de fora do holofote da atenção.
Como da vez que sonhei, quando era pequeno, que estava caindo em um poço que parecia sem fundo e consegui me agarrar em uma lâmpada presa em uma das paredes de pedra. É um sonho, não me julgue, caro leitor.
Anos depois, falando desse sonho, revivi aquela angústia de cair, cair, cair… e não encontrar o fundo. Mas e a lâmpada? L-A-M são as iniciais do meu nome completo (Luciano Assis Mattuella). Um detalhe mínimo, ínfimo, envergonhado. Mas é sempre reconfortante saber que, não importa quão assustadora a queda, temos sempre o nosso nome para recomeçar uma vida.
Quero dedicar este espaço da newsletter a tudo isso que só é importante quando olhamos de perto. Isso que não precisaria estar na cena, mas mesmo assim está. Isso que só aparece quando contamos de novo uma história.
Tudo isso que escapa à burocracia da vida, e por isso mesmo é o abrigo do mais humano de nós.
Atravessando o manguezal
por Thaiane Paschoal
Eu adoraria que os começos não fossem tão difíceis. Estou há dias com essa página de Word aberta pensando no que escrever para a primeira edição da nossa nova newsletter. Seria ótimo se brotasse uma ideia sensacional, mas não é assim que as coisas acontecem. Na maior parte das vezes, é preciso atravessar um manguezal para passar a fase inicial das coisas.
Dia desses uma grande amiga que mora na Índia viajou para Andaman and Nicobar Islands. Um paraíso localizado no Golfo de Bengala nos confins do Oceano Índico, um oásis que fica onde minha ocidental ignorância nunca permitiu enxergar no mapa. Acompanhando as redes sociais dela, posso atestar que o lugar é belíssimo. A areia branquinha, o mar intocado e ela disposta a se aventurar decidiu fazer trilha até uma praia paradisíaca.
Acontece que no final dessa trilha tinha um manguezal e para chegar na praia era preciso atravessá-lo. Na ida, guias locais indicaram o melhor caminho, ela teve que andar cuidadosamente para não pisar ou ser pisada por caranguejos e foi assim que chegou em uma das praias mais lindas que já conheceu.
O problema é que na volta, os guias já não estavam lá indicando o caminho de retorno e ela se perdeu. Foram quarenta minutos afundando o pé no manguezal até achar uma saída. Ela me contou que sentiu um pouco de medo porque estava próximo ao horário do anoitecer. Eu acho que o medo pode até ser bom desde que ele não te paralise.
O medo é o manguezal no fim da trilha. Ou atravessa ou fica preso afundando.
Em 23 de fevereiro completei um ano morando definitivamente em Porto Alegre. Já tinha passado um tempo entre idas e vindas, mas a data que virou o marco foi o dia que a cachorra veio para cá. Foi simples mudar: umas malas de roupas e Vida no banco traseiro, mas mesmo tendo sido simples não tem como negar que foi desafiador.
Me propus a receber de braços abertos os novos começos. Não acho que exista outra forma de se ter uma vida interessante. Quando cheguei nessa cidade, o meu frio na barriga era da pura expectativa de descortinar o novo. Hoje, desfruto da sensação prazerosa de viver esse amor fresco. “Pois aquela sensação que faz tirar o sapato e se sentir em casa é o quem nos dá”*.
Criar algo novo é bem difícil, não dá para saber o que você vai encontrar do outro lado. A maioria das vezes nossas invenções seguem seu curso, como a água de um rio. Criação é nascente e criar é sempre nascer de novo.
* Trecho da música “Mãe Sampa” de Paulo Vieira.
Deixarei o link do vídeo de Paulo Vieira e Tulipa Ruiz cantando essa belíssima canção que tem a energia de uma manhã de sábado. Apreciem:
Links interessantes:
Esse link te leva diretamente ao site da Livraria da Câmara dos Deputados, onde você pode baixar gratuitamente a versão online do livro “O Voto Feminino no Brasil” de Teresa Cristina de Novaes Marques. O livro é excelente e didático, e se trata de um relato histórico precioso pela luta da emancipação feminina em nosso país: https://livraria.camara.leg.br/o-voto-feminino-no-brasil-2ed
A editora Aleph tem sido o carro-chefe das publicações de ficção científica no Brasil. Neste link , temos um texto de Maria Clara Villas sobre um tema recorrente neste gênero: as distopias. Vale a leitura: https://editoraaleph.com.br/estamos-vivendo-em-uma-distopia/
Pra quem entende inglês e quer fugir do óbvio no que se refere à psicanálise, vale a pena conferir a revista Parapraxis, organizada pela Psychosocial Foundation, um coletivo que estuda a intersecção entre o campo da psicologia, da política e do social: https://www.parapraxismagazine.com/
Última coluna do Luciano publicada na Sler em 07/03/2023 “Você é uma pessoa intensa?”: https://sler.com.br/voce-e-uma-pessoa-intensa/
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Até a próxima!