Instinto um pouco sórdido
por Thaiane Paschoal
Nunca escondi que sou uma telespectadora voraz de reality shows. O programa No Limite, que estreou em julho de 2000, inaugurou uma nova era na televisão brasileira. Desde a transmissão do primeiro programa, fiquei presa na frente da TV nas noites de domingo para ver a competição entre os participantes sendo desafiados em provas de sobrevivência. Quem ganhava a prova recebia vantagens como uma porção maior de comida, fósforos ou sabonetes.
Fui parte da audiência cativa que ficou eletrizada enquanto assistia pessoas suadas e cansadas dormindo em acampamentos no meio da natureza, precisando fazer coisas bizarras como abocanhar um olho de cabra para ficar mais próximas do prêmio de trezentos mil reais* e um carro.
Do Big Brother ao Casamento às cegas, assisti de tudo um pouco. Extreme makeover: home edition, Ilhados com a sogra, De férias com o ex, The Taste Brasil e assim vai, a lista é longa. Isso não me torna especialista mas me deixa reflexiva tentando encontrar o porquê dessa atração magnética, o que é isso que me atrai tanto em espiar a vida alheia.
Uso a desculpa que assisto realities por razões antropológicas, mas a verdade é que a possibilidade de observar alguém vivendo a vida é fascinante. Assim como é fascinante o fato de que mesmo achando esse instinto um pouco sórdido, continuo cedendo para a minha curiosidade.
Diferente do início dos anos 2000, quando eu tinha de esperar o fim do Fantástico para assistir um episódio do meu show preferido, hoje basta que eu abra o Instagram e comece a zapear os stories para ter acesso a um entretenimento feito sob medida para mim.
Assim como a estreia do No Limite alterou a dinâmica da televisão, os stories do Instagram mudaram nossa relação com as redes sociais. Seja pela facilidade de se perder no scroll infinito ou pelo fato de acessar a vida íntima de alguém próximo. Em um programa de televisão, os participantes são distantes, nos stories estamos assistindo a pessoa que mora ao lado. Essa é uma mistura hipnotizante.
A tela nos captura por meio desses enredos complexos onde não se enxerga uma divisão precisa entre a realidade e a ficção. Quando alguém liga a câmera do celular com a intenção de se auto transmitir publicamente, já não se sabe o que é sobre a pessoal real e o que é a sua personagem.
Não canso de me perguntar a razão desse fascínio. Talvez seja porque queremos ver até onde o outro vai.
Quando os participantes do No Limite se sujeitaram a serem filmados com ânsia de vômito enquanto mordiam aquela bola viscosa, mastigavam e engoliam, eu pensava que jamais faria uma coisa daquelas. Nunca saberemos se eu faria ou não, mas a cada vez que eu abro o Instagram, vejo um monte de gente disposta a comer olho de cabra por um prêmio.
* Em reportagem realizada pelo UOL em abril de 2021, a vencedora da edição, Elaine, afirma que deu o carro para sua mãe e que após os descontos dos impostos, recebeu um valor em torno de R$173 mil do prêmio.
https://tvefamosos.uol.com.br/noticias/redacao/2021/04/27/elaine-vencedora-de-no-limite-1-relembra-perrengues-perdi-12-quilos.htm#:~:text=A%20cabeleireira%20levou%20o%20pr%C3%AAmio,cerca%20de%20R%24%20173%20mil
Famílias endogâmicas
por Luciano Mattuella
As obras clássicas - Shakespeare, Machado de Assis, Cidadão Kane - nos dizem algo sobre o que é crônico do ser humano, sobre aqueles traços que nos constituem profundamente. Já a cultura pop explicita o que há de agudo na nossa época, trazendo para a cena pública questões constitutivas da contemporaneidade.
Para saber o que está se passando no quente do momento, sempre vale a pena dar uma olhada nas atrações mais assistidas das plataformas de streaming, especialmente na Netflix, que tem maior público no Brasil. Se um programa está tão em voga, é sinal que ele toca em assuntos que têm feito questão, que têm mobilizado os espectadores.
Um bom exemplo disso vem sendo os reality shows como Casamento às Cegas, Ilhados com a Sogra e O Ultimato: ou Casa ou Vaza. Todos péssimos, mas todos excelentes lupas para vermos com maiores detalhes a forma como temos amado e desejado.
Entre tantos outros pontos, um especificamente tem me chamado a atenção: a prevalência do discurso endogâmico entre os participantes. “Estou atrás de um homem que seja batalhador como o meu avô”. “Me apaixonei pela fulana porque ela tem os olhos da minha mãe”. E assim vai.
Para um psicanalista, escutar isso é curioso, mas não deixa de provocar também uma certa apreensão. Afinal, tudo o que tem a ver com a endogamia também flerta com o incesto e, consequência disso, com a fragilização do laço social. Um participante da última edição do Casamento às Cegas chega a dizer que é “o filhinho da vovó”. Filho. Da avó. Complicada e ilustrativa confusão geracional.
Mas faz parte do processo civilizatório entrar em contato com o fora, permitir-se sair de casa, concreta e metaforicamente. Circular pela diferença e encontrar o outro permite que alguém possa questionar o lugar de onde veio, a família na qual foi educado, as raízes que tanto podem nutrir quanto aprisionar. Por isso mesmo que, no discurso endogâmico, o mundo é sempre muito perigoso: as ruas são repletas de assaltantes, a vizinho é promíscuo, os amigos são más-companhias. Se o fora é tão assustador, então só restaria a alternativa de manter-se em casa, entre os seus, acolhido - mas também sufocado, na maior parte das vezes.
Este é um discurso potencialmente nocivo, uma vez que não circular pela diferença quase sempre significa ficar paralisado em uma narrativa sobre si mesmo que foi feita pela família, restar como um personagem de um enredo do qual talvez nem se queira participar. É um achatamento das possibilidades de narrar a si mesmo, em última instância. Mais um sinal, aliás, do fracasso do ficcional nos nossos tempos.
Tanto assim, que a lógica endogâmica está no cerne das narrativas da extrema-direita. A família como fundamento, para estes extremistas, não passa de uma forma de controle, especialmente controle sobre a sexualidade das mulheres, das filhas a quem não é permitido circular pela vida, pelo mundo.
Não parece ser à toa, neste sentido, que o discurso endogâmico compareça de forma tão acentuada em reality shows de relacionamento, ou seja, em programas que tematizam uma das possibilidades de questionamento da lógica familiar.
E também não é sem razão que estes programas capturem tanto o nosso interesse.
Para assistir
Bela Vingança
O filme dirigido por Emerald Fennell é sobre uma ex-estudante de medicina que largou a faculdade por um motivo trágico e desde então sai todas as noites fingindo estar bêbada e se usando como isca para dar uma lição nos homens que tentam abusar dela. A temática é pesada, mas algumas escolhas da direção o tornam brilhante. A crítica construída no filme inclui o universo das comédias românticas que ajudaram a produzir e reforçar o imaginário de uma geração. Vale muito:
Para ouvir/assistir
Podcast: Par ou Ímpar de Maria Ribeiro com Andréia Horta e Cris Fibe
Para ler
Artigo sobre pessoas que se declaram “solo-sexuais”, ou seja, que preferem a masturbação a transar com outra pessoa (em inglês):
https://www.vice.com/en/article/dy35z7/solosexual-what-it-means-why-i-prefer-masturbation
Últimas publicações:
Última coluna do Luciano publicada na Sler, em 31/10/2023, “A importância dos ideais“: https://sler.com.br/a-importancia-dos-ideais/
Texto “Escritor é quem escreve“ da Thaiane para a revista parêntese na edição de outubro/23: https://www.matinaljornalismo.com.br/parentese/edicao-mensal/artigo-edicao-mensal/escritor-e-quem-escreve/
Participação do Luciano no podcast Viracasacas:
Aula com Luciano e Vitor Hugo Triska realizada no Espaço Mon Soleil, “A psicanálise precisa ser uma ciência?“:
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