Após um longo hiato, estamos de volta. A Nota de Rodapé voltou sem uma periodicidade definida, mas com muita vontade de compartilhar textos, opiniões e pitacos culturais. Estamos felizes em encontrá-los por aqui.
Planeta Proibido
por Luciano Mattuella
Neste final de semana, quero reabrir algumas caixas que fechei há mais de vinte anos.
Aqui no escritório de casa há um armário grande, que também é uma biblioteca. Essas caixas estão nas portas de baixo. Nelas, há um pequeno tesouro, ou eu julgo assim, pelo menos: centenas de revistas em quadrinhos de todos os tipos, da época da minha adolescência e começo dos meus vinte anos.
Eu fui um ávido leitor de quadrinhos desde a infância.
Posso dizer, com um orgulho do qual quase me envergonho, que acompanhei a melhor fase dessas publicações aqui no Brasil. Era a época da transição do chamado “formatinho”, revistas menores, para o “formato americano”, exemplares maiores e mais bem acabados.
Ler quadrinhos foi também a minha primeira rede social: entre os amigos, nos dividíamos para comprar as revistas, uma vez que nossas mesadas não eram lá grandes coisas. Trocávamos entre nós as revistas já lidas, assim ficávamos todos a par dos últimos acontecimentos na vida de Peter Parker, de Clark Kent e do Bruce Wayne. Era uma época em que ainda não era ridículo admirar bilionários.
Para um adolescente que nunca fez parte da “gurizada legal”, era um alívio poder fazer parte de um grupo, mesmo que esse fosse o grupo dos “caras meio estranhos”. Aliás, eu fui não só um adolescente, mas uma criança meio estranha, também.
Quando pequeno, eu era gago, fazia muita força pra ser escutado, o que me deixou até hoje com uma irritação profunda quando sou interrompido enquanto estou falando. Ou quando parece que o outro não está escutando. Não surpreende que eu tenha escolhido uma profissão em que a minha escuta está à disposição do outro, em que me proponho a acolher tudo o que meus pacientes me dizem.
É quase como uma história de origem, como se costuma chamar no universo das histórias em quadrinhos: o menino que fazia força para ser escutado, quando cresce, escolhe um ofício que permite os outros falarem livremente, sem serem interrompidos.
É o meu superpoder, digamos assim.
Ler quadrinhos também me remete à época da minha infância em que eu morava no interior e meu pai trabalhava em Porto Alegre. Quando ele voltava para casa, sempre levava de presente para mim algumas HQs, compradas na saudosa Planeta Proibido, uma loja de artigos nerds aqui de Porto Alegre.
Eram revistas em inglês, o que demonstra o tanto de investimento dos meus pais na minha educação. Ótimo, mas, como todo superpoder que se preze, há uma contraparte custosa: estes quadrinhos certamente me fizeram um cara dedicado aos estudos, mas também me tornaram profundamente crítico e atento à minha insuficiência.
Vai saber, talvez falando em um outro idioma eu não fosse gago.
Ler em inglês foi a minha revanche, ou pelo menos a minha forma de me sentir um pouco mais à vontade por ser esse adolescente alienígena que fazia contato com um planeta proibido.
Por muitas vezes eu me senti, na verdade, como alguém vindo deste outro universo. Como o Super-Homem, mas sem a capa. E a super-força. E a perspicácia. E a visão de raio-x. E a Lois Lane, que parecia sempre se apaixonar pelos outros rapazes.
Por sorte, nunca gostei muito da Lois Lane.
Mas por que a vontade de abrir novamente essas caixas?
Uma hipótese é que eu acho que ando fazendo as pazes com o adolescente alienígena que eu fui. Nos últimos tempos, tenho só por curiosidade me voltado a alguns interesses daquela época, até mesmo para ver como evoluíram os meus hobbies que tanto me foram lugares de conforto. Tenho feito visitas ao Planeta Proibido de onde vim.
Para minha surpresa - e um tantinho de rancor, admito -, boa parte das coisas que antes me alienavam hoje em dia são cult: Dungeons and Dragons, o RPG de mesa a que tantas horas de vida dediquei, agora é jogado por celebridades e os dados de vinte faces são artefatos maneiros. As celebridades e suas vinte faces - isso é papo pra outro momento.
Os filmes da Marvel estão por toda parte e são vistos pelas versões 2.0 dos caras por quem as Lois Lanes se interessavam na minha época.
Ironicamente, eu acho os filmes da Marvel um tanto bobos e mal-feitos.
Toma essa, Clark Kent!
Jogar videogame agora é cool. A indústria dos games gera milhões e milhões de dólares por ano. Mesmo quem não tem um console em casa, joga alguma coisinha no celular. Ou vai dizer que tu nunca passou raiva com Angry Birds? Ou nunca perdeu horas no Candy Crush? Falando em crush, um dos hobbies que eu e minha esposa temos é jogar videogames por horas a fio.
Thaiane rainha, Lois Lane, nadinha.
Enfim, acho que eu finalmente estou fazendo as pazes com o alienígena que sempre fui. Como num roteiro mais ou menos de ficção científica, estou me reencontrando com o Luciano de outra época, sentando num banco de praça, e dando notícias do futuro.
Dizendo para ele que, um dia, ele vai abrir as caixas guardadas e vai sentir uma nostalgia estranhamente familiar.
E tudo bem, a adolescência é isso mesmo: um monte de caixas guardadas que, com alguma sorte, abriremos no futuro imersos em um terno orgulho redescoberto.
Encontro
por Thaiane Paschoal
Após dez anos e três cirurgias, tive que me encontrar com um novo corpo em frente ao espelho. Fiz o explante das minhas próteses de silicone. Essa foi a terceira cirurgia porque, no meio do caminho desta década, precisei substituí-las devido a um recall realizado pela fabricante.
Isso mesmo, um recall de implantes que estavam dentro do meu corpo — algo um pouco mais complexo do que a substituição de peças de um veículo automotor. Todo esse processo me gerou muita angústia e insatisfação e, por isso, acho difícil falar sobre os detalhes. Então, estou encurtando o caminho para o presente. Cá estou eu, aos trinta e nove anos, rumando desenfreadamente para a entrada na meia-idade, finalmente despeitada.
Agendar a cirurgia foi logisticamente complicado, mas mentalmente simples. A parte mais delicada foi aceitar ficar parada por um período de quatro semanas.
Logo nos primeiros dias da recuperação, encontrei o que seria um dos meus maiores desafios: me olhar nua no espelho. Foi também um encontro com todo o meu histórico de questões com a autoimagem — questões que, por um tempo, estiveram apaziguadas e agora retornaram com tudo, galopantes. A realização de que eu tenho um novo corpo chegou em mim como um coice no meio da testa.
Testa com botox, diga-se de passagem. Não estou aqui para enganar ninguém.
Cedi ao botox, ao laser clareador de manchas, ao explante de próteses que me geravam uma inflamação crônica. A quase todo o resto da parafernália estética estou conseguindo resistir. O difícil é resistir a ele: o Ozempic.
A magreza extrema e o emagrecimento instantâneo alheio me engatilham. Me lembram dos tempos de privação, de dietas restritivas e de muito ódio ao meu corpo. Foi apenas há poucos anos que deixei de me pesar diariamente e abri mão de perseguir os “cinco quilos a menos” que passei um longo período almejando. Mais precisamente desde os meus quatorze anos, idade em que fui morar em Curitiba, mas isso é assunto para outro texto.
Em algum momento da minha vida adulta, encontrei a autoaceitação — um presente que o feminismo me deu. Aceitei ser “medium size” e ter gorduras e dobrinhas aqui e ali. Entendi que beleza não é sobre isso, mas nunca me desprendi do pensamento persistente de querer emagrecer. Ao menos do fardo da balança no banheiro eu me libertei.
De uns tempos para cá, as pessoas aparecem cada vez mais magras no meu feed. Falo de atrizes e influenciadoras, pessoas que vivem da própria imagem, mas isso se alastrou e pegou as minhas mulheres, aquelas a quem admiro: amigas, colegas, vizinhas, parceiras de trabalho. Tantas delas estão emagrecendo freneticamente e, claro, postando tudo.
A meu ver, algumas delas continuam belíssimas. Já outras aderiram a um aspecto que me faz pensar em fome ou desânimo — vejo-as escorrendo em direção à magreza extrema, com cabeças enormes sustentadas sobre corpos que agora parecem tão frágeis. Sempre me lembro da citação de Naomi Wolf no livro O Mito da Beleza, de 1990:
“Uma cultura focada na magreza feminina não revela uma obsessão com a beleza feminina. É uma obsessão sobre a obediência feminina. Fazer dietas é o sedativo político mais potente na história das mulheres: uma população passivamente insana pode ser controlada”.
Não estou me referindo aos hábitos saudáveis e quero deixar isso bem claro. Sou a favor e adepta de uma alimentação elaborada e balanceada. Refiro-me à perseguição de uma determinada imagem, à adesão a um instrumento político que retornou à tona com ferocidade para assolapar nossos avanços.
O movimento feminista avançou demais nos últimos anos — já era hora de sermos controladas novamente. Tenho achado difícil ficar nas trincheiras. Sinto dificuldade em resistir. Sou apenas uma pessoa miseravelmente humana em frente ao espelho, sendo obrigada a encontrar uma nova imagem.
Vivi e vivo intensamente a nossa primavera e celebro todas as nossas vitórias. Mas, com o poder dos algoritmos comandado por seres inescrupulosos, em pleno 2025, na luta por aceitação do corpo imperfeito, estamos perdendo de lavada.
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Agradecemos a leitura.